sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Memória de um louco, de um chapeleiro louco

Chamam-me louco, é verdade. Em todas as histórias e peripécias da minha vida, chamaram-me louco. Nunca percebi o porquê desse nome, para caracterizar a minha pessoa. Mas este pensamento mudou, para mim e para toda a gente, que me chamava louco. Tudo isto aconteceu, devido a um dia invulgar num mundo invulgar, que despertou toda a comunidade do País das Maravilhas e que ficou recordado na minha memória, para o resto da minha vida.

Era um dia de vento. Deveras diferente de todos os outros dias de vento, era diferente porque o som era diferente. Nunca fui uma pessoa realmente sensível, para pensar neste género de coisas, mas, naquele dia, não deixei de reparar que o vento estava diferente, até eu próprio estava igualmente diferente. Deixei de dar tanta importância a este assunto e fui tomar o meu chá, como faço sempre todos os dias, exactamente pela mesma hora.

A mesa, grande e colorida, situava-se exactamente atrás da casa do Coelho, o meu fiel companheiro de chá. Quando cheguei à mesa, para meu grande espanto, não vi ninguém. Fiquei um pouco espantado, porque, habitualmente, o Coelho já lá estaria. Fui então bater à porta da casa dele, para, assim, começarmos com o nosso ritual, que sempre nos acompanhou e sempre nos acompanhará até ao final das nossas vidas.

Bati, bati… mas nada, e por isso, como por aqui as portas nunca estão fechadas à chave, lá entrei na casa do Coelho e reparo que a casa dele está horrivelmente suja e velha, com aquele ar de casa abandonada. Naquele momento, parei para reflectir um pouco e apercebi-me de que nunca antes tinha ido a casa do Coelho. Afinal, nunca tinha sido preciso, já que ele sempre chegava à mesa primeiro do que eu. Agora, não o encontrava. Eu nunca poderia começar a tomar chá sem ele, seria devastador para a minha pobre e frágil alma.

Fui logo à sua procura, em todos os sítios possíveis e imaginários. Comecei por vasculhar em todos os cantos da velha casa, em todos os prados esverdeados eu andei, em todas as tocas subterrâneas eu espreitei e nada vi. Fui então bater à porta das pessoas da aldeia Maravilha, a aldeia das pessoas que tinham a terrível mania de me chamarem louco, mas, naquele momento de desespero, não me preocupei muito com isso. Já estava exausto de tantos caminhos que tinha percorrido. Fisicamente e mentalmente, desde que acordei, fiquei com a sensação de que algo iria acontecer, mas nunca imaginei que tivesse de passar por esta tortura, a tortura e o sofrimento de vir a perder o meu fiel amigo Coelho, aquele que sempre viveu comigo e comigo tudo partilhou, até os meus pensamentos.

A primeira casa onde bati pareceu-me tão exageradamente colorida como todas as outras, à minha volta, o que sempre me repugnava. Quando a porta se abriu, não hesitei em perguntar logo pelo Coelho, que estava sempre a tomar chá comigo. A mulher ao ouvir aquilo começou-se a rir, essa sim, que nem uma autêntica louca. Quando, finalmente, a mulher parou de rir, embora continuando a olhar-me com ar alucinado, disse-me, em tom muito sério, algo que nunca tinha pensado ouvir antes:

- O teu amigo Coelho? Esse já morreu há 10 anos!!!

De imediato, caí de joelhos no chão e lá permaneci como que paralisado, como paralisada parecia estar a minha alma. Naquele momento de aterradora solidão, não conseguia falar, não conseguia mexer, não conseguia ouvir e estava cego de tristeza. Pelos vistos também não sentia o meu corpo, não sentia o meu coração, não sentia nada a não ser lágrimas a escorrer lentamente pela minha cara petrificada.

De repente, levantei-me e, perante mim, toda a aldeia, em que se entreolhavam e exibiam abundantes gestos, indicando a minha demência. Apesar disso, levantei-me, libertei-me, limpei as minhas lágrimas e gritei:

- VOCÊS! SUAS MISERÁVEIS CRIATURAS, TINHAM RAZÃO! ESTOU LOUCO, ESTOU COMPLETAMENTE LOUCO! MAS NÃO PORQUE VEJO PESSOAS MORTAS, OU PORQUE TODOS ESTES ANOS PENSEI TER UM AMIGO. ESTOU LOUCO DE SOLIDÃO, ESTOU LOUCO DE SOFRIMENTO, ESTOU LOUCO DE TER CONSTRUÍDO UMA AMIZADE EM VÃO! SIM, PORQUE EU TINHA A LOUCURA NA MINHA LIBERDADE, O CONFORTO NA MINHA ILUSÃO, O TESOURO NESSA AMIZADE E VOCÊS, CRIATURAS DESTE ESTRANHO MUNDO, DESTRUIRAM TUDO!!!

Parei de gritar e olhei à minha volta. Vi milhares de pessoas com o vazio estampado nas suas caras, em algumas delas até se avistavam pequenas lágrimas a escorrerem dos seus rostos, numa prova de espontânea solidariedade e pena para com a minha pessoa.

Depois disto não me recordo de muito mais, sentindo-me a desvanecer em direcção ao solo. Só mais tarde, senti o regresso da minha voz que surgiu lentamente, rouca e fraca, tanto que só as pessoas mais próximas me conseguiram ouvir, a dizer:

- Eu não sou louco e nunca o fui, eu apenas sonhei, e fiz disso o meu mundo …

Depois de dizer isso, tudo indica que de novo cerrei lentamente os olhos. E quando, passado algum tempo, não sabendo eu quanto, os abri de novo, vi que tinha começado a nevar.

Diana Rogagels, n.º 11, 10ºC


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